terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

AS RUAS COMO PÚLPITO

Nas esquinas das grandes cidades ou nos trens, pregadores enfrentam as mais difíceis situações para anunciar o Evangelho.

Ao chegar ao centro de qualquer grande cidade brasileira é difícil não dar de cara com uma rodinha de pessoas. Rostos curiosos, interessados ou mesmo com ar de desprezo ou gozação acompanham o que se passa ali no meio. Ainda que o centro das atenções possa ser uma apresentação circense ou um show de música, em muitos casos ainda é alguém pregando a Palavra de Deus. Com a Bíblia na mão, o punho cerrado e bastante empolgação, esses pregadores levam muito a sério a ordem de “ir e fazer discípulos”. Para eles, é a obediência ao chamado para pregar que diferencia o crente que verdadeiramente tem compromisso. A tempo ou fora de tempo, ou melhor, no lugar ou fora de lugar, onde há movimento de pessoas, sejam ruas, praças, parques e até trens, eles estão lá, falando de salvação e de Jesus Cristo.

Na região central da cidade de São Paulo, por onde circulam milhares de pessoas diariamente - gente que precisa ser instruída na Palavra, não é preciso procurar muito para encontrar algum crente com a Bíblia aberta diante de um aglomerado de pessoas, movidas pela fé ou por mero interesse. São líderes religiosos, pastores ou mesmo estudantes de teologia, indivíduos que tem em comum o fervor religioso, e que gesticulam, gritam, encenam cada passagem bíblica como se estivessem em um palco. Se muitos passam apressados e nem dão bola para seus sermões, eles não se incomodam. Movidos pelo sentimento de que tem um chamado divino, o importante é obedecer a ordem para serem testemunhas. E cada um que cede alguns minutos de seu tempo vale por dezenas que passam despercebidos. “Se uma alma vale mais que o mundo inteiro, pregar a uma única pessoa já é uma vitória”, comenta Anísio Vicente Marcondes, pastor e pregador de rua na capital paulista. Para superar o preconceito e as dificuldades, ele se inspira na própria Bíblia e procura sempre se lembrar das necessidades de muitos que estão ao seu redor. “Nas ruas e praças é muito grande o número de pessoas que vive em aflição e com sede de Deus. Tomo como exemplo o apóstolo Paulo, que pregava em lugares públicos e mesmo rejeitado tantas vezes, foi um instrumento para levar salvação e o Evangelho para o mundo”, afirma. Nascido no interior do Paraná e com 25 anos de ministério, ele tem muitas dessas histórias de salvação para contar, mas guarda uma em especial na ponta da língua: “Um senhor aposentado, que se dizia católico, ficava por horas me observando, e eu sempre me despedia dele com um ‘até amanhã’. Certa tarde, ele me repreendeu dizendo que a partir daquele dia eu poderia simplesmente lhe dizer ‘paz do Senhor’, pois ele havia se tornado um crente em Deus”, lembra ele, enquanto dá uma pausa na pregação que faz diariamente na Praça Ramos de Azevedo. Sempre acompanhado de guitarra e caixa de som, difícil é encontrá-lo sozinho, pois para onde vai, costuma atrair uma boa quantidade de ouvintes.

Com uma estratégia diferente, que preza mais pela abordagem pessoal mas também costuma dar bons frutos, Percy Rojas Herrera, peruano natural de Satiro, pequena cidade localizada na Cordilheira dos Andes, diz “encarar o interessado olho no olho”, assim que sente a carência da Palavra na vida da pessoa. “Gosto de ficar frente a frente com a pessoa e minha única intenção é que cada um conheça a grandeza e o plano de Deus para o homem na Terra. Tiro proveito da minha origem e sotaque pois, como estrangeiro encontro maior aceitação”, declara o pregador. Oriundo de uma família de católicos declarados, o missionário conhece bem o terreno em que está pisando, pois ele mesmo enfrentou grande resistência ao se converter ao Cristianismo. “É um trunfo que me permite entender melhor a reação daqueles com quem converso”. Apesar de ter apenas 34 anos, experiências e assuntos é o que não faltam nas conversas de Percy. Ele já pregou para os índios na selva peruana, foi perseguido por terroristas do Sendero Luminoso - grupo guerrilheiro do Peru cuja fama se espalhou pelo mundo devido à violência que emprega - e morou na casa de Rosario Rivera - ex-secretária de Che Guevara - que atualmente dirige uma rede de refeitórios populares na periferia de Lima. Há seis anos morando no Brasil, ele é incisivo ao comentar que prefere pregar nas ruas em vez de igrejas: “Nos templos há pastores que anunciam a verdade. Nas ruas,a responsabilidade é minha”. Além de missionário, o peruano também é compositor, músico e formado em pedagogia. Mas sua maior satisfação está nas pessoas que se renderam a Cristo por meio de suas orações. “Um fato que marcou muito minha vida aconteceu em um ônibus em Londrina, interior do Paraná. No meio do trajeto, subiu uma mulher totalmente perturbada, com as mãos ensangüentadas e mordendo a si mesma. Orei em espírito e lhe falei com muita paz e amor sobre o Evangelho. De repente, ela começou a gritar, chamando a atenção dos passageiros. Foi quando eu coloquei minhas mãos sobre sua cabeça e, em nome de Jesus, repreendi o inimigo que se apossava de seu corpo. Para glória de Deus, ela foi liberta”, conta emocionado.

Opiniões divididas - Apesar dos testemunhos de cura e salvação, esse crescente e inusitado meio de evangelização não agrada a todos. Leandro Caiçolo, vocalista da banda paulista Eterna, pertencente ao Mosteiro da Esperança, entidade católica que ampara dependentes químicos, sente-se incomodado com a abordagem imposta pelos pregadores urbanos. “O que mais me desanima é saber que milhares de pessoas se deixam levar por essas ilusões maquiadas sob o título de verdade, de segurança, de realidade e de confiança”, comenta. O escritor Nicolas Kerenski vai na mesma linha e também não concorda com a forma com que os pregadores se dirigem aos pedestres. “Odeio quando me usam como alegoria em seus discursos inflamados, apontando-me como se em mim habitasse mais ganância ou ódio do que em seus despedaçados e cínicos corações”.

Embora muita gente pense da mesma forma e quando percebe alguém pregando mais à frente até mude de calçada para desviar do importuno evangelista, a maioria prefere neutralidade, apenas observando, seja por curiosidade, seja por achar engraçado os trejeitos extravagantes de alguns crentes, que procuram demonstrar nos gestos e mímicas a profundidade de sua fé. “Desde os tempos apostólicos, os evangelistas cristãos utilizam os espaços públicos para transmitir sua mensagem. No Brasil, também a pregação e o culto ao ar livre se tornaram característicos dos missionários e pastores protestantes e, se hoje os evangélicos cresceram tanto, devem isso, em parte, a esse corajoso trabalho”, comenta o pastor presbiteriano e professor de História da Igreja, Alderi Souza de Matos.

Vale lembrar que, além da inspiração de personagens bíblicos como o já citado apóstolo Paulo e o profeta Jonas, que atravessou a cidade de Nínive, pregando durante três dias o juízo divino, a pregação em ruas e praças faz parte do espírito que se seguiu à própria Reforma Protestante. No século 18, a sociedade européia foi chacoalhada por homens como John Wesley, o fundador do metodismo, e George Whitefield, um dos mais destacados avivalistas cristãos em todos os tempos. Pregando nas minas de carvão, nas favelas, nas universidades e em parques, eles apresentaram Deus a multidões de todas as classes e ramos sociais, tornando-se precurssores dos anônimos pregadores da atualidade. Porém, será que aquilo que funcionou tão bem no passado, hoje não é apenas motivo para contenda e risadas? Para Alderi Souza de Matos, não há nada mais irreal do que esse tipo de afirmação. “Muitas pessoas, principalmente das camadas populares, têm se convertido por essas pregações, deixando o mundo das drogas, da mendicância e da violência e se filiando a alguma igreja”, afirma ele, garantindo que mesmo com outros métodos mais modernos e que atingem muito mais gente, ainda existe lugar para a pregação ao ar livre. Ele conta que gosta de parar e apreciar a atuação desses pregadores, para observar suas técnicas, a mensagem e a reação dos ouvintes. “Fico um pouco de lado, pois já sou evangélico. Mas é inegável que essa tradição tem se mantido viva. Mesmo que o perfil e o preparo teológico dos pregadores tenha mudado no decorrer dos anos, os frutos apresentados estão aí para quem quiser ver”.

E, de fato, exemplos de pregadores anônimos que conquistaram fama a partir de seu trabalho nas ruas não faltam. Um dos que se tornaram mais conhecidos é o pastor David Wilkerson, que na década de 60 foi um dos pioneiros na pregação do Evangelho entre as violentas gangues de rua da cidade de Nova York. Sua história foi registrada no best-seller A cruz e o punhal e virou até filme. Por aqui, o exemplo de sucesso fica por conta do bispo Edir Macedo que, a partir das pregações de rua, construiu a Igreja Universal do Reino de Deus, segunda maior denominação evangélica do Brasil, com mais de 2 milhões de fiéis.

Sobre trilhos e rodovias - O apelo da pregação é tão forte, que muitos preferem outros “púlpitos” para anunciar sua mensagem. Diariamente, milhões de passageiros utilizam os trens que compõem a malha ferroviária e interligam grande parte da região metropolitana de São Paulo. Disputando espaço e a atenção popular com os vendedores ambulantes, estão os pregadores, sempre munidos de Bíblias, instrumentos musicais e muita disposição para trazer mais vidas para o Senhor.

Na linha Brás/Calmon Viana, uma das mais movimentadas na zona leste da metrópole, um dos carros ficou conhecido como o “vagão dos evangélicos”, por reunir um grande número de cristãos. Ali, eles podem orar, testemunhar, cantar e, claro, pregar, com toda a liberdade e sem ameaças nem violência. É um autêntico templo móvel e o passageiro se sente em um culto pentecostal. “Nada melhor que orar para enfrentar o desconforto da viagem”, comenta um dos passageiros sem se importar muito com o aperto e os trancos da composição. Difícil mesmo é o pregador ficar só por ali. Como “pescar no aquário” não vale, muita gente prefere se aventurar por outros vagões. Um desses é Adeildo Francisco de Lima, segurança de uma loja de artigos evangélicos na capital paulista. Ele afirma ter recebido uma determinação de Deus para se tornar pregador nos trens: “O mundo é o meu púlpito. Ninguém escolhe ficar gritando num vagão lotado sob o olhar desconfiado das pessoas e sendo chamado de maluco. Só por Deus mesmo, e eu fui um dos escolhidos para esse trabalho”. Por diversas vezes ele teve que enfrentar a revolta de passageiros e até de funcionários da companhia. “Já levei muita pancada, cusparada, todo tipo de represália por parte dos seguranças das estações. Um grupo de pagode se reúne toda sexta-feira à noite na estação da Luz e ninguém fala nada. Tocar pagode, jogar truco, dizer palavrões e ofender as mulheres, tudo isso pode, agora é só começar a falar de Deus, que alguém já manda calar a boca”, desabafa. De acordo com o artigo 5.º e parágrafo 11 da Constituição Federal, a expressão e comunicação é livre no Brasil, sem censura ou impedimento. É com base nessa lei e no senso do chamado do Senhor que Adeildo continua exercendo seu trabalho ministerial. “Perante a lei somos todos iguais e temos os mesmos direitos. Pelo que sei, não existe um decreto que proíba pregar ou falar em público”, opina. O escrevente judiciário Almir Rogério de Andrade, que congrega numa igreja em Santo André, costuma encontrar muitos crentes pregando nos trens metropolitanos durante suas viagens. Ele se diz favorável a esse tipo de evangelização, desde que o pregador respeite a fé alheia. “Infelizmente, tem pessoas que desprezam ou reclamam por puro preconceito. Se a mensagem é coerente e feita no momento certo, apoio e gosto de escutar. Agora, quando o cara grita demais, atrapalhando quem está cansado ou entra em questões polêmicas e doutrinárias, é complicado agüentar, ainda mais sabendo que, em vez de ajudar, o cara serve de pedra de tropeço”.

Na carona de Jesus - Na fé católica, são Cristóvão é o protetor dos caminhoneiros. Mas para Helly Orsi, um aposentado piracicabano que vive em São José do Rio Preto, interior paulista, o verdadeiro protetor das estradas é Jesus Cristo. Idealizador do projeto “Amando o Caminhoneiro” – ação que visa dar assistência gratuita aos motoristas nas áreas de saúde, jurídica, social, de segurança e espiritual, o simpático missionário de 70 anos e com uma vitalidade de causar inveja a muito garotão, prega em postos de gasolina e em cima de um viaduto em plena BR153 – a Transbrasiliana – uma das maiores do país e que cruza vários estados.

Munido de faixas com dizeres como “que Jesus te abençoe e te guarde nesta estrada” ou “na estrada da vida, dê carona para Jesus”, aliadas a gestos que remetem à salvação, bênçãos e ao amor incondicional de Deus, ele sinaliza para os motoristas que trafegam pela região. Muitos chegam a diminuir a velocidade para ler as mensagens e agradecer ao pregador. “Há caminhoneiros viajando com as famílias que querem e precisam ser abençoados, pois é grande o perigo que correm nas rodovias”, alerta. Em sua singela humildade, Helly Orsi se julga um homem simples e sem estudos. “Sou um peão de Deus”, brinca.

Mesmo com salário de aposentado, ele já fez várias viagens missionárias pela Europa e América Latina, testemunhando em igrejas e eventos. Mas onde sente que seu trabalho realmente frutifica é nas estradas. “Certa vez recebi um chamado para orar para um enfermo no Hospital do Câncer de Barretos (SP). Ele começou a chorar, dizendo que havia me visto no viaduto e sempre quis subir até lá para que eu orasse por ele. Pois bem, Deus se encarregou de nos colocar frente a frente”, conta sempre muito simpático. Inspirando-se no livro de Habacuque que diz “escreve a visão e torna-a bem legível sobre tábuas, para que a possa ler quem correndo passa”, o pregador deixa um aviso para os motoristas: “Se notarem, num cair de noite, centenas de carros dando sinal de luz ao passar por um viaduto com uma faixa escrita em letras garrafais, não se assustem. Não é nenhum acidente, apenas um servo do Senhor, indicando que naquele dia Jesus Cristo irá pegar uma carona com você”.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 116

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